quarta-feira, novembro 24, 2004

O abuso das Episiotomias

O uso indevido da episiotomia e da posterior costura (episiorrafia) é um exemplo de violação do direito humano de estar livre de tratamentos cruéis, humilhantes e degradantes. A episiotomia tem sido indicada para facilitar a saída do bebê, prevenir a ruptura do períneo e o suposto afrouxamento vaginal provocado na passagem do feto pelos genitais no parto normal.
Sabe-se que essa indicação não tem base na evidência científica, mas sim na noção arraigada na cultura sexual e reprodutiva do "afrouxamento vaginal", decorrente do "uso" da vagina, seja pelo uso sexual ou reprodutivo. Essa representação da vagina "usada", "lasseada", "frouxa" é motivo de intensa desvalorização das mulheres e se apóia tanto na cultura popular quanto na literatura médica produzida por grandes autores brasileiros e internacionais.

Na fala dos profissionais repete-se a crença de que, sem esse corte e essa sutura adicional que aperta a vagina, chamada "ponto do marido", o parceiro se desinteressaria sexualmente pela mulher ou, no mínimo, por sua vagina. Essa crença é difundida por muitos autores como, por exemplo, Jorge de Rezende - possivelmente, o maior autor de obras sobre obstetrícia no Brasil -, e é, certamente, uma justificativa importante do uso da cesárea:

"A passagem do feto pelo anel vulvoperineal será raramente possível sem lesar a integridade dos tecidos maternos, com lacerações e roturas as mais variadas, a condicionarem frouxidão irreversível do assoalho pélvico" (Fonte: Rezende, 1998).

Se for considerado que, de acordo com evidências científicas, a episiotomia tem indicação de ser usada em cerca de 10% a 15% dos casos e ela é praticada em mais de 90% dos partos hospitalares na América Latina, pode-se entender que anualmente milhões de mulheres têm sua vulva e vagina cortadas e costuradas sem qualquer indicação médica.

Um estudo mostrou que o uso rotineiro e desnecessário da episiotomia na América Latina desperdiça cerca de US$ 134 milhões só com o procedimento, sem contar nenhuma de suas freqüentes complicações (Fonte: Tomasso et al., 2002).

Pode-se calcular o desperdício daquilo que é quantificável, como litros de sangue, dias de incapacidade, prejuízos na amamentação, material cirúrgico ou simplesmente dinheiro público, nesses milhões de episiotomias inúteis realizadas anualmente. Há ainda o imponderável sofrimento físico e emocional da mulher - além da mensagem de que seu corpo é defeituoso e de que ela será sexualmente desprezível se não se submeter a esse ritual, que supostamente lhe devolverá a "condição virginal".

Vários estudos mostram que a episiotomia provoca dor intensa. Mesmo nos serviços onde as mulheres não têm acesso a anestesia adequada, elas têm que enfrentar esses e outros procedimentos altamente dolorosos. Nessas situações, as mulheres freqüentemente gemem e choram de dor, "do primeiro ao último ponto" (Fonte: Alves e Silva, 2000).

Mesmo sem o conhecimento das chamadas evidências científicas, muitas mulheres sentem-se injustiçadas por essa violência física e emocional. A expressão do horror sentido pelas parturientes deveria alertar os profissionais de saúde a refletir sobre a prática. Um diretor de maternidade conta que: "Quando eu estava fazendo residência, atendi uma pessoa que tinha feito um parto em Angola durante a Guerra Civil, outro em Paris e estava fazendo o terceiro comigo, no hospital-escola aqui no Brasil, com tudo o que eu achava que era bom: episiotomia, fórceps, tudo. Quando acabou, a paciente falou: - Prefiro ser torturada a ter um parto como este que acabei de ter. [...] Foi o momento em que eu parei para rever que tipo de obstetrícia aprendemos" (Fonte: Diniz, 2002).

Retirado de
Xô Episio

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